Meu amor por ele não era normal; era neurótico e homicida. Eu me sentia fora de mim, praticamente drogada. Ele me controlava facilmente, desde o começo, como se tivesse me intoxicado.
Ele tinha um sorriso ácido. Aliás, tudo nele era ácido. Seus olhos, sua voz, seu senso de humor, seu toque, tudo me intoxicando e me viciando vagarosa e delicadamente. Ele era como uma droga, injetando-se aos poucos no meu sangue para que eu não percebesse que estava escorregando e caindo direto em suas mãos.
Eu não percebia.... Fui facilmente dominada pela ilusão que meu vício criava; enxergava apenas uma imagem congelada no que ele queria. Quando algo dentro de mim gritava que estava errado, que eu precisava me olhar no espelho e ver o que aquele amor venenoso estava me causando, eu apenas ignorava.
A razão berrava, pedindo para que eu fugisse daquela prisão, mas a verdade era que eu gostava de como minhas células reagiam diante do perigo de seu veneno... de como seus olhos queimavam meu corpo enquanto me observavam.
Foto: @fotografierende
A gente negou muito, não é? Negamos pelo menos cinco vezes por dia para cada um de nossos amigos em comum, dez para nossos respectivos e incontáveis vezes um para o outro.
Negamos o que havia e o que não havia também, não importa... A questão é que reiteradas vezes fomos questionados acerca do "nós", e sempre dizíamos que ele não existia, que absurdo desvirtuarem tão pura e sincera amizade.
A gente negou, dia após dia, que houvesse qualquer intenção a mais; por vezes nos chamamos de irmãos, em uma tentativa desesperada de esconder o que nosso peito pedia.
É, a gente negou, recusou, mentiu, tudo para que ninguém percebesse que faltava coragem, de ambos os lados, de admitir que por dentro estávamos chamando um pelo outro.
Foto: @fotografierende
Eu nunca escrevi sobre você, não é? Não como já escrevi sobre todos os outros, em cartas, em desabafos de palavras não ditas. Não que eu não quisesse escrever, não tenho nenhuma birra contigo, nem nada do gênero. Acho que apenas te deletei completamente da minha memória. Sequer um personagem sobrou de você.
É engraçado lembrar quão apaixonada eu fiquei logo que te conheci, e como praticamente fiquei de quatro por você. Estava claro para o mundo inteiro; tão claro que até você já sabia antes mesmo de eu abrir o jogo... Antes mesmo de eu mostrar as cartas, que você já conhecia.
Logo depois que todas as minhas
ilusões foram destruídas pelo seu “quero apenas ser seu amigo”, seguido de um
abraço carinhoso, que quase me matou, eu procurei conversa após conversa, olhar
após olhar, dia após dia, pelos sinais que eu não vi.
Até hoje não os encontrei.
Parei de viver pensando nisso,
pensando em onde tinha me enganado, tentando descobrir o que eu fizera de
errado. Eu não podia ter me iludido tão fortemente. Os sinais estavam tão
claros pra mim – como poderiam ser mentira?
Foram meses bem sombrios para mim
– tão sombrios quanto enevoados, tanto que sequer me lembro do que me ocorreu
naquela época, e nem faz tanto tempo. Sei que depois que decidi me desvincular
de qualquer sentimento por você, eu apaguei tudo. Todas as memórias falsas e as
ilusões verdadeiras. Todos os sorrisos e olhares; todas as piadas e conversas
no banco após a aula. Tudo foi deletado como se sequer tivesse existido.
As tramas que comecei a escrever
para o personagem que você seria não foram jogadas fora porque não
consigo me livrar de meus escritos... mas apenas por isso; não porque você
merecesse ser mais um dos meus personagens. Você não merecia tamanha honra. Não merecia ser eternizado.
Naquela época eu não sabia; eu
achei que eu era a errada. Não tinha consciência de que de príncipe, você não
tinha nada. Agora, quando eu olho para trás, sei que eu me deixei embrulhar
pelas minhas ilusões e mais uma vez me permiti viver nas minhas fantasias. Você, ao contrário, percebeu – e se divertiu com isso.
Você gostava de me ver te procurando. Gostava do sentimento de domínio por existir alguém que o queria tanto. A palavra certa é essa – eu estava dominada, completamente
domada. Um leão de circo que você brincava do jeito que preferia. Soltava a rédea
quando estava cansado e ia atrás de outros brinquedos, mas nunca o suficiente para
que perdesse sua fonte de autoestima.
Sua fonte de ego inflado.
Fui a menininha apaixonada,
correndo atrás de você, por tempo demais. Tempo o suficiente para que eu percebesse
quão ridícula era minha situação, mas tempo demais para que eu saísse por cima.
Eu saí machucada, bastante
ferida, e as cicatrizes impediram-me por meses de tantas outras coisas. Não que
eu te culpe – não sozinho. Você foi o culpado por brincar; eu fui a culpada por
me manter cega por tanto tempo.
Por sorte não te encontrei mais depois
de tudo. Quando vi, fingi que não enxergava, e apaguei no instante seguinte a
informação de sua existência. No começo foi difícil, confesso, mas você fazia o
mesmo com tamanha naturalidade que me deu mais forças para apagar.
Deletei tudo, como disse. E nunca
mais pensei. Realmente não me importava mais. Não foi o primeiro coração
ferido, não seria o último. Não te daria nenhum título pelos seus feitos.
Até hoje.
Quando te encontrei novamente, não teve
nenhum coração palpitante. Não houve rosto corando quando você se sentou ao meu
lado. Nenhuma alteração na minha respiração, nenhuma palavra engasgando na
garganta... Nada além da indiferença de ter ao meu lado um completo
desconhecido.
Não foi por você agir como se eu
fosse uma desconhecida também, como se nada tivesse acontecido... Foi a forma
como meu corpo não reagiu ao tapa na minha cara de que você ainda existia. Simples
assim – não houve qualquer reação. Nem vontade de te olhar, nem vontade de
mandar mil mensagens para minha melhor amiga contando que você estava ao meu lado.
Nada.
Foi minha indiferença que me surpreendeu. Atingiu-me tão forte que fui obrigada a procurar todos os papéis sobre você
que não joguei fora. Li um por um e sorri. Sorri mesmo. Não por você, mas por
mim, porque eu sempre fui alguém que nunca conseguiu se desvincular de ninguém,
mesmo quando a pessoa me faz mal. Jogo tudo para debaixo do tapete e finjo que
não sei que ainda estou machucada.
Mas não com você. Eu simplesmente
não sinto mais nada. E por isso você merece um personagem.
Foto: @lgmiertschink
Eu imaginei cada detalhe da nossa história. Assisti em primeira mão ao nosso reencontro, com uma trilha sonora ao fundo, tão bela e suave que, como nos filmes, já dizia tudo.
Eu senti nos lábios seu beijo desesperado para ser desculpado por ter sido tão medroso - por não ter assumido nosso sentimento, por não ter dito que sim, que realmente queria ser meu.
Eu ouvi todos os sussurros de "Eu já sabia" de nossos amigos. Vi em seus olhos o quanto eles, assim como eu, torciam pelo dia que finalmente nos acertaríamos. Eu assisti nosso relacionamento conturbado pela distância, mas sempre lutando pela sobrevivência porque valia a pena. Eu e você valíamos a pena.
Contei os meses para o nosso casamento; fizemos o tempo parar na nossa noite de núpcias e o depois só foi consequência da nossa felicidade. Família, trabalho... E o mais importante, eu e você sempre.
No fim, estávamos nós contando versões de nossa vida junto para entreter netos. A mesma cumplicidade, o mesmo amor. Eu imaginei cada detalhe da nossa história, que nunca vai acontecer. É que às vezes eu sonho demais.
Foto: @euquetireiessa
Fala a verdade, você gosta, não é? Gosta de ter minha atenção e faz de tudo para ter a certeza de que ela é só sua - nem que para isso seja necessário me tirar do sério ou me usar como objeto de suas brincadeiras. Você dá risada, esperando que me agrade, e mesmo que eu acompanhe seu riso, você vem com mil desculpas, dizendo que não quer de jeito me ofender, longe dos olhos dos outros para que ninguém perceba quem você é de verdade.
Admite. Toda essa macheza e ignorância é apenas pose. Você se preocupa, sente minha falta. Se eu demoro a responder seus chamados, você fica impaciente e tenta esconder com qualquer brincadeira que realmente se importa - mas meu nome não sai da sua boca mesmo quando eu não estou presente.
Fala a verdade, admite. Você me ama.
Fala a verdade, admite. Você me ama.
Confesso, fiquei sem saber como agir da última vez que te encontrei. Fazia tanto tempo que não via seu sorriso sincero, seu olhar curioso e seu cabelo rebelde, que perdi o foco diante de todas as lembranças boas.
Minha mente se encheu de vontades, uma atrás da outra. Como eu queria passar meus dedos entre seus cachos mais uma vez, com suas mãos percorrendo minhas costas, como na noite do nosso último beijo. Seria tão bom se pudéssemos voltar àquela noite, sem preocupações, sem qualquer outra coisa além de nós dois.
Tanta coisa aconteceu depois daquela noite; e eu e você... bom, nós nos tornamos apenas as lembranças boas e ruins que vêm me atormentar cada vez que te reencontro.
Em geral, eu viraria o rosto, fugiria de você, ignoraria o passado, da mesma forma que você fez. Mas foi a forma convidativa com que você me olhou que me quebrou e me jogou ao poço da confusão.
Quis ser fria ou talvez demonstrar que estava chateada, mas quis ainda mais te abraçar apertada e matar a saudade que me sufocava por dentro.
Como disse, não soube como reagir. Arrastei-me até você e, em meio a vergonha de querer seu abraço, o medo de você perceber e o remorso por tudo que nos sucedeu, acabei optando pela frieza.
Fugi assim que pude, sem confiar em mim mesma, e passei o resto da noite analisando porque ainda me permitia ficar naquele estado por sua presença. Ignorei os sinais, mas eles me perseguiram minuto após minuto. Nem mesmo o álcool foi capaz de superá-los - não consegui calar os gritos internos.
Confesso, eles só se calaram quando te vi nos braços de outra, suas mãos correndo pelo cabelo que deveria ser meu, seus lábios beijando alguém que não era eu. No lugar dos gritos por atenção, veio o choro. Mesmo depois de tanto tempo, eu não estava pronta para aquilo e nem queria estar. Queria seu cabelo brincalhão, seu sorriso maroto e seu olhar carinhoso apenas para mim.

Fito o espelho diante de mim: eu não me enxergo entre as camadas de proteção que criei ao meu redor. Uso mais que máscaras - são fantasias completas para iludir o mundo, para que ele não me veja de verdade. Escondo tudo que é real em mim, meus sonhos, meus anseios. Minhas paixões e até mesmo o meu sorriso. Nem mesmo esse abrir de lábios que vejo em reflexo não é meu.
Dia após dia, sou obrigada a construir e manter uma pessoa que não existe. Sou obrigada a suportar a pessoa que o mundo quer que eu seja. O que me resta? Aceitar em silêncio minha participação desta peça de teatro a que não pertenço, mas me domina dia após dia. Domina meu corpo, minhas roupas... Dias após dia, sou obrigada a conferir incessantemente cada um de meus detalhes, calculadamente escolhidos para refletirem em harmonia aos olhos dos outros.
Mas, diante da imagem que criei, quem sou de verdade chora, sem chance de se revelar. Sem chance de mostrar ao mundo que é muito mais do que mostro, do que me permito ser. Sei que sou mais do que essa pessoa que não conheço, mas que tem meu nome – quero ser mais que tudo isso, mas não consigo...
Minhas verdades não ditas se sufocam e se calam, lutando com garra para não morrer diante do reflexo de quem não sou. Eu apenas ajeito o cabelo, retoco a maquiagem, em meio aos gritos, implorando por misericórdia, abafados pela minha covardia. Tenho fé que um dia me libertarei dessas amarras... Mas não hoje.
Dia após dia, sou obrigada a construir e manter uma pessoa que não existe. Sou obrigada a suportar a pessoa que o mundo quer que eu seja. O que me resta? Aceitar em silêncio minha participação desta peça de teatro a que não pertenço, mas me domina dia após dia. Domina meu corpo, minhas roupas... Dias após dia, sou obrigada a conferir incessantemente cada um de meus detalhes, calculadamente escolhidos para refletirem em harmonia aos olhos dos outros.
Mas, diante da imagem que criei, quem sou de verdade chora, sem chance de se revelar. Sem chance de mostrar ao mundo que é muito mais do que mostro, do que me permito ser. Sei que sou mais do que essa pessoa que não conheço, mas que tem meu nome – quero ser mais que tudo isso, mas não consigo...
Minhas verdades não ditas se sufocam e se calam, lutando com garra para não morrer diante do reflexo de quem não sou. Eu apenas ajeito o cabelo, retoco a maquiagem, em meio aos gritos, implorando por misericórdia, abafados pela minha covardia. Tenho fé que um dia me libertarei dessas amarras... Mas não hoje.

MENTIROSA
Minha mãe me disse uma vez, entre as diversas lições que ela deveria me dar como boa mãe, que mentir é feio. Eu, ao meus seis, sete anos, ignorei completamente suas palavras - tanto o é que sei de várias histórias que evidenciam o quão mentirosa eu era quando criança. E, olha, eu era das boas.
Mamãe que me desculpe por, mais uma vez como outras tantas, desafiar suas importantíssimas lições, mas eu, particularmente, acho belíssima a arte da mentira, afinal, todo bom escritor é um belo de um mentiroso.
Quem mais, além de um mentiroso, poderia inventar pessoas e tramas capazes de fascinar e envolver os outros? Não é a descrição de como eu dormi mais cedo na outra noite que chama atenção, mas qualquer outra aventura no meio da madrugada.
Eu conto sobre cada uma dessas aventuras como se eu realmente acreditasse nelas - como se eu tivesse vivido todos os segundos dessas tramas - nos meus contos, nos meus poemas. Se os tolos e ingênuos acreditam nos casos estapafúrdios que o conto, paciência. Eu apenas relato, fica a cargo deles acreditar ou não.
Mas é difícil não comprar uma boa mentira. Ela instiga, ela cativa e nos leva a mundos que talvez não chegaríamos se não nos déssemos o direito de acreditar na ilusão, mesmo que apenas por um momento.
É por isso que eu minto. Minto em cada um dos meus personagens e escrevo realidades que estão longe da verdade. Sinto-me bem e quem lê também. Não há nada de errado em enganar um pouco quando só se tem benefício.