VOCÊ ACREDITARÁ EM HERÓIS NOVAMENTE.
Vivemos na era de ouro de filmes
de super-heróis.
Por mais que filmes como X-Men (2000), de Bryan Singer e Homem-Aranha (2002), de Sam Raimi tenham
sido avanços monumentais no que se refere à construção do gênero de filmes
baseados em HQs, não foi até Homem de
Ferro (2008), de Jon Favreau e o já consagrado Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008), de Christopher Nolan, que
começamos a ver um verdadeiro renascimento desse tipo de filmes. Ao que isso se
deu?
É possível argumentar que esses filmes eram,
até então, apenas uma forma de apelar para os fãs das histórias originais, sem
se preocupar com tramas e personagens, uma forma de ganhar dinheiro e nada
mais, e que ultimamente essas histórias estão recebendo o respeito que merecem,
tanto por parte dos estúdios quanto por parte dos diretores e fãs. E isso não
está errado.
No entanto, é possível argumentar que se
trata de algo mais simples do que isso. Que nos últimos anos, estamos vendo o
florescimento de filmes de super-heróis com temas.
Filmes que estão tão preocupados em expor uma ideia quanto com fazer dinheiro,
filmes feitos com esmero por pessoas que querem genuinamente que eles deem
certo.
Baseado nessa noção, eu digo que Mulher-Maravilha é o melhor filme de
super-herói desde O Cavaleiro das Trevas.
***
Diana, interpretada por Gal Gadot, é a
princesa das amazonas de Temiscira, uma raça de guerreiras imortais que se
ocultou do mundo dos homens desde a Antiguidade. Quando o piloto americano
Steve Trevor, interpretado por Chris Pine, cai nas praias de sua ilha trazendo
em seu encalço uma esquadra de alemães, Diana se vê impelida a tomar parte de
uma guerra monumental que há pouco tempo ela nem sabia que acontecia.
Com direção de Patty Jenkins (Monster: Desejo Assassino, The Killing, Arrested Development), o longa procura servir como uma história de
crescimento e amadurecimento da protagonista, além de ser uma história de
origem da lendária heroína, tudo no cenário sujo e brutal da Primeira Guerra
Mundial.
A progressão dos cenários é uma história por
si só: partimos da adequadamente nomeada Ilha Paraíso das amazonas e vamos até
a sujeira da Londres industrial no meio do esforço bélico, indo até os horrores
que tomaram lugar no front ocidental,
numa das cenas mais emocionantes e impactantes do filme. Para um filme com
classificação etária PG-13 (impróprio para menores de 13 anos) nos Estados
Unidos, Mulher-Maravilha consegue
mostrar a sua justa parte dos horrores da Grande Guerra, desde os soldados
feridos, mutilados ou mortos que Diana encontra pelo caminho até civis
inocentes que perderam tudo o que tinham para a marcha inexorável do conflito.
Porém, não vá se empolgando: não é nenhum Até
o Último Homem (2016), de Mel Gibson. Apesar de todas essas cenas pesadas,
o roteiro possui um otimismo inato que sobrevive a todos os horrores e
atrocidades que as personagens encontram. No entanto, o clima de desespero e
desesperança impregna toda a segunda metade do longa, num clímax que vai
crescendo a cada cena que passa.
Vale ainda ressaltar que a caracterização
das personagens está impecável, nos quesitos de figurino e maquiagem, tanto na
ilha das amazonas quanto na “Boa e Velha” Londres quanto na escuridão opressiva
das trincheiras. Não há um momento sequer em que se é tirado da experiência do
filme por algo de artificial na roupa das personagens.
Quanto as atuações, temos um filme
particularmente forte. Muito tem se discutido sobre o real talento de Gal
Gadot, uma atriz com pouquíssimos filmes em seu currículo e que, até pouco
tempo, estava prestes a desistir da carreira de atriz. Apesar de não possuir
nem metade da experiência que algumas de suas co-estrelas mais consagradas,
tais quais Connie Nielsen (Rainha Hipólita), Robin Wright (Antíope) e Chris
Pine, Gadot exibe um carisma e uma confiança sem iguais, conquistando cada
segundo que passa interpretando a protagonista, numa performance que mistura
tanto a inocência de Diana perante as facetas mais cinzas da humanidade quanto
a determinação ferrenha da guerreira amazona, vencendo o público com
facilidade. As outras guerreiras amazonas também possuem personalidades
díspares: vemos em Hipólita o feroz desejo materno de manter sua filha em
segurança na Ilha Paraíso, ao mesmo tempo em que Antíope se preocupa com o
treinamento da garota e se ela estará pronta para os sacrifícios que terá de
fazer. No mundo dos homens, temos destaque para o grupo de desajustados convocados
por Steve Trevor para lidar com a ameaça alemã. Temos o charlatão e cafajeste
Sammy que é, nas palavras de Steve, “capaz
de tapear alguém em quase tantas línguas quanto você [Diana]”. O
traumatizado Charlie, um atirador de elite que claramente já passou por sua cota
de batalhas nessa guerra. Chief, o nativo americano que se recusa a tomar
partido num conflito que não é seu, ao mesmo tempo que se recusa a permanecer
alheio ao sofrimento resultante dele. O destaque, no entanto, vai para o
próprio Steve Trevor. Chris Pine tem uma química sem igual com Gal Gadot, e a
relação entre as duas personagens evolui de maneira natural, com diálogos
cativantes e engraçados. O timing de comédia de Pine é espetacular. Trevor se
revela um personagem com múltiplas facetas: um que vê e se horroriza com a
totalidade do conflito em que se encaixa e outro que reconhece que as vezes é
simplesmente impossível salvar todos. Os atritos que ele sofre com Diana são
sempre significativos para a trama e para as personagens, exibindo novas faces
tanto para o público quanto para eles mesmos.
A trilha sonora fica por conta de Rupert
Gregson-Williams (Até o Último Homem, The
Crown), com o já icônico tema composto por Hans Zimmer e Junkie XL,
apresentado pela primeira vez em Batman
vs Superman: A Origem da Justiça (2016), de Zack Snyder. Williams, no
entanto, escolhe segurar o tema tanto quanto pode, preferindo melodias mais
suaves ou austeras, apenas inserindo o tema nas cenas em que Diana assume o
manto de Mulher-Maravilha, seja em suas palavras como nas suas ações. Como um
todo, a trilha sonora é homogênea, com picos aqui e ali, e funciona bem com o
resto do filme, especialmente da metade para frente.
Mulher-Maravilha
é o primeiro filme de ação de Patty Jenkins, com sequências explosivas
espalhadas através de seu tempo de duração. Em entrevistas, ela disse que
tratou essas cenas como todas as outras, o que talvez tenha sido um problema.
Apesar de serem cenas confiantes e bem coreografadas, nota-se uma distinta falta
de ritmo no que se refere à sua execução quando comparadas às cenas dramáticas,
se parecendo menos com “sequências” e mais como “momentos” de ação. Apesar
disso, todas são um ótimo entretenimento que, em um filme em que todo o resto
prioriza a imersão total no período e na história, acabam por lembrar ao
espectador que sim, este é um filme.
A disparidade da qualidade dos efeitos
visuais também é outro ponto negativo. Há vezes em que eles são ótimos, em que
a câmera lenta se une aos atores e é complementada pela trilha sonora e o
resultado é incrível. Outras, uma cena que poderia ter sido realmente excelente
acaba por não atingir seu potencial máximo devido a um CGI mal renderizado.
Diferentemente de Batman vs Superman e Esquadrão
Suicida (2016), Mulher-Maravilha não
sofre grandes problemas de edição ou apresentação. O clima apresentado nos
trailers é aquele presente no filme, e não parece que há cenas faltando no
roteiro ou que foram cortadas na edição. A edição das cenas de ação também é
boa, não apelando para cortes rápidos e tremidos para dar a ilusão de
movimento, ao invés disso optando por planos abertos e cortes espaçados que dão
espaço e tempo para que a coreografia seja devidamente apreciada.
A cinematografia é excelente, contrastando
mais uma vez os planos abertos da terra das amazonas com planos cada vez mais
fechados conforme Diana adentra o mundo dos homens. O uso de cores e saturação
também contribui para levar o uniforme dessa icônica personagem à vida na
grande telona e fazê-lo se tornar verossímil.
O que torna Mulher-Maravilha não só um ótimo filme de super-herói, mas um
excelente filme em geral é a sua preocupação com o tema.
Tema é algo difícil de se definir. Como
regra geral, pode ser descrito como a ideia central por trás de uma história, a
base sobre a qual ela é construída. O tema de Capitão América: Guerra Civil (2016), dos irmãos Russo, por
exemplo, é a tomada de responsabilidade por parte do governo sobre as ações de
um pequeno grupo de indivíduos versus a
liberdade e integridade de ditos indivíduos. O tema de Batman vs Superman, por outro lado, é a pergunta do que acontece quando uma figura quase messiânica
chega a Terra e o impacto que isso tem na vida dos cidadãos. Filmes sem um tema
bem definido ou que não recebe muita atenção sofrem o risco de se tornarem
monótonos e sem sentido, tal qual o Quarteto
Fantástico (2015), de Josh Trank.
Qual o tema de Mulher-Maravilha?
O tema de Mulher-Maravilha é a perda da inocência em frente à complexidade do
mundo, a realização de que há muito mais cinza num mundo que antes a
protagonista tomava como preto no branco. É sobre a escolha que se faz quando
sua fé é despedaçada perante a realidade. O roteiro retorna a essa escolha em
diversos momentos e com uma variedade de personagens, fazendo com que a trama
avance em um bom ritmo e não deixando que o espectador se esqueça do que está
sendo apresentado. O final do arco de Diana e Steve Trevor é especialmente
bonito, reunindo todos os temas até aí apresentados e oferecendo uma resposta
às perguntas feitas.
A crítica mais fácil de ser feita ao roteiro
está na falta de um vilão realmente convincente. Apesar de possuir atores excelentes
no papel dos antagonistas, como Danny Huston como general Ludendorff e Elena
Anaya como a Dra. Isabel Maru a.k.a. Doutora Veneno, o filme dá pouco tempo
para que eles sirvam como algo mais que os “caras maus” alemães, com o Deus da
Guerra, Ares, puxando as cordas por baixo dos panos. Porém, quanto mais se vê e
se pensa sobre o filme e o que Patty Jenkins quis dizer com ele, chega-se à
conclusão de que o verdadeiro vilão é própria guerra.
A Primeira Guerra Mundial é vista hoje como
um dos confrontos mais sangrentos e sem sentido da história da humanidade, em
que milhares de vidas foram perdidas em razão de motivos pífios mascarados em
ideias de patriotismo. É um dos eventos mais vergonhosos da história humana, e
um exemplo de tudo o que existe de ruim sobre nós mesmos. E esse é o verdadeiro
mal contra o qual a Mulher-Maravilha luta. O confronto que, de novo nas
palavras de Trevor, “... talvez seja
culpa de todos nós. Talvez seja minha, também.”
O inimigo de Diana não pode ser vencido por
armas convencionais ou táticas de batalha, pois se trata de algo intrínseco a
natureza dos homens e que fará Diana decidir se os homens são merecedores ou
não da sua proteção, afinal.
***
É ainda mais difícil saber se um tema será
efetivo ou não perante a audiência. Eu gostaria sinceramente de poder dizer que
é algo específico no roteiro ou na direção, ou até na atuação ou na edição, ou
mesmo uma combinação de todas essas coisas, mas isso não seria verdade. Um
filme que possui verdadeiramente tema,
coração e identidade é aquele
feito por pessoas que possuem uma convicção no
que estão fazendo e pelo que o estão fazendo. É o tipo de coisa que
não pode ser comprada, não importa quanto dinheiro esteja envolvido: é algo que
precisa estar lá desde o início da produção, claro na mente de todos os
presentes.
Mulher-Maravilha
é a mais nova prova de que o gênero dos super-heróis ainda tem muito a
oferecer, da maneira com que olhamos e reconhecemos os heróis ao nosso redor
até a maneira com que reconhecemos os heróis e vilões em nós mesmos. O roteiro,
a música, a atuação e a direção entram em conjunto para construir uma
experiência divertida, imersiva e, acima de tudo, significativa. A Mulher-Maravilha é, sem dúvidas, a heroína de que
precisávamos.