Meu amor por ele não era normal; era neurótico e homicida. Eu me sentia fora de mim, praticamente drogada. Ele me controlava facilmente, desde o começo, como se tivesse me intoxicado.
Ele tinha um sorriso ácido. Aliás, tudo nele era ácido. Seus olhos, sua voz, seu senso de humor, seu toque, tudo me intoxicando e me viciando vagarosa e delicadamente. Ele era como uma droga, injetando-se aos poucos no meu sangue para que eu não percebesse que estava escorregando e caindo direto em suas mãos.
Eu não percebia.... Fui facilmente dominada pela ilusão que meu vício criava; enxergava apenas uma imagem congelada no que ele queria. Quando algo dentro de mim gritava que estava errado, que eu precisava me olhar no espelho e ver o que aquele amor venenoso estava me causando, eu apenas ignorava.
A razão berrava, pedindo para que eu fugisse daquela prisão, mas a verdade era que eu gostava de como minhas células reagiam diante do perigo de seu veneno... de como seus olhos queimavam meu corpo enquanto me observavam.
Foto: @fotografierende
A gente negou muito, não é? Negamos pelo menos cinco vezes por dia para cada um de nossos amigos em comum, dez para nossos respectivos e incontáveis vezes um para o outro.
Negamos o que havia e o que não havia também, não importa... A questão é que reiteradas vezes fomos questionados acerca do "nós", e sempre dizíamos que ele não existia, que absurdo desvirtuarem tão pura e sincera amizade.
A gente negou, dia após dia, que houvesse qualquer intenção a mais; por vezes nos chamamos de irmãos, em uma tentativa desesperada de esconder o que nosso peito pedia.
É, a gente negou, recusou, mentiu, tudo para que ninguém percebesse que faltava coragem, de ambos os lados, de admitir que por dentro estávamos chamando um pelo outro.
Foto: @fotografierende
Eu nunca escrevi sobre você, não é? Não como já escrevi sobre todos os outros, em cartas, em desabafos de palavras não ditas. Não que eu não quisesse escrever, não tenho nenhuma birra contigo, nem nada do gênero. Acho que apenas te deletei completamente da minha memória. Sequer um personagem sobrou de você.
É engraçado lembrar quão apaixonada eu fiquei logo que te conheci, e como praticamente fiquei de quatro por você. Estava claro para o mundo inteiro; tão claro que até você já sabia antes mesmo de eu abrir o jogo... Antes mesmo de eu mostrar as cartas, que você já conhecia.
Logo depois que todas as minhas
ilusões foram destruídas pelo seu “quero apenas ser seu amigo”, seguido de um
abraço carinhoso, que quase me matou, eu procurei conversa após conversa, olhar
após olhar, dia após dia, pelos sinais que eu não vi.
Até hoje não os encontrei.
Parei de viver pensando nisso,
pensando em onde tinha me enganado, tentando descobrir o que eu fizera de
errado. Eu não podia ter me iludido tão fortemente. Os sinais estavam tão
claros pra mim – como poderiam ser mentira?
Foram meses bem sombrios para mim
– tão sombrios quanto enevoados, tanto que sequer me lembro do que me ocorreu
naquela época, e nem faz tanto tempo. Sei que depois que decidi me desvincular
de qualquer sentimento por você, eu apaguei tudo. Todas as memórias falsas e as
ilusões verdadeiras. Todos os sorrisos e olhares; todas as piadas e conversas
no banco após a aula. Tudo foi deletado como se sequer tivesse existido.
As tramas que comecei a escrever
para o personagem que você seria não foram jogadas fora porque não
consigo me livrar de meus escritos... mas apenas por isso; não porque você
merecesse ser mais um dos meus personagens. Você não merecia tamanha honra. Não merecia ser eternizado.
Naquela época eu não sabia; eu
achei que eu era a errada. Não tinha consciência de que de príncipe, você não
tinha nada. Agora, quando eu olho para trás, sei que eu me deixei embrulhar
pelas minhas ilusões e mais uma vez me permiti viver nas minhas fantasias. Você, ao contrário, percebeu – e se divertiu com isso.
Você gostava de me ver te procurando. Gostava do sentimento de domínio por existir alguém que o queria tanto. A palavra certa é essa – eu estava dominada, completamente
domada. Um leão de circo que você brincava do jeito que preferia. Soltava a rédea
quando estava cansado e ia atrás de outros brinquedos, mas nunca o suficiente para
que perdesse sua fonte de autoestima.
Sua fonte de ego inflado.
Fui a menininha apaixonada,
correndo atrás de você, por tempo demais. Tempo o suficiente para que eu percebesse
quão ridícula era minha situação, mas tempo demais para que eu saísse por cima.
Eu saí machucada, bastante
ferida, e as cicatrizes impediram-me por meses de tantas outras coisas. Não que
eu te culpe – não sozinho. Você foi o culpado por brincar; eu fui a culpada por
me manter cega por tanto tempo.
Por sorte não te encontrei mais depois
de tudo. Quando vi, fingi que não enxergava, e apaguei no instante seguinte a
informação de sua existência. No começo foi difícil, confesso, mas você fazia o
mesmo com tamanha naturalidade que me deu mais forças para apagar.
Deletei tudo, como disse. E nunca
mais pensei. Realmente não me importava mais. Não foi o primeiro coração
ferido, não seria o último. Não te daria nenhum título pelos seus feitos.
Até hoje.
Quando te encontrei novamente, não teve
nenhum coração palpitante. Não houve rosto corando quando você se sentou ao meu
lado. Nenhuma alteração na minha respiração, nenhuma palavra engasgando na
garganta... Nada além da indiferença de ter ao meu lado um completo
desconhecido.
Não foi por você agir como se eu
fosse uma desconhecida também, como se nada tivesse acontecido... Foi a forma
como meu corpo não reagiu ao tapa na minha cara de que você ainda existia. Simples
assim – não houve qualquer reação. Nem vontade de te olhar, nem vontade de
mandar mil mensagens para minha melhor amiga contando que você estava ao meu lado.
Nada.
Foi minha indiferença que me surpreendeu. Atingiu-me tão forte que fui obrigada a procurar todos os papéis sobre você
que não joguei fora. Li um por um e sorri. Sorri mesmo. Não por você, mas por
mim, porque eu sempre fui alguém que nunca conseguiu se desvincular de ninguém,
mesmo quando a pessoa me faz mal. Jogo tudo para debaixo do tapete e finjo que
não sei que ainda estou machucada.
Mas não com você. Eu simplesmente
não sinto mais nada. E por isso você merece um personagem.
Foto: @lgmiertschink
Eu imaginei cada detalhe da nossa história. Assisti em primeira mão ao nosso reencontro, com uma trilha sonora ao fundo, tão bela e suave que, como nos filmes, já dizia tudo.
Eu senti nos lábios seu beijo desesperado para ser desculpado por ter sido tão medroso - por não ter assumido nosso sentimento, por não ter dito que sim, que realmente queria ser meu.
Eu ouvi todos os sussurros de "Eu já sabia" de nossos amigos. Vi em seus olhos o quanto eles, assim como eu, torciam pelo dia que finalmente nos acertaríamos. Eu assisti nosso relacionamento conturbado pela distância, mas sempre lutando pela sobrevivência porque valia a pena. Eu e você valíamos a pena.
Contei os meses para o nosso casamento; fizemos o tempo parar na nossa noite de núpcias e o depois só foi consequência da nossa felicidade. Família, trabalho... E o mais importante, eu e você sempre.
No fim, estávamos nós contando versões de nossa vida junto para entreter netos. A mesma cumplicidade, o mesmo amor. Eu imaginei cada detalhe da nossa história, que nunca vai acontecer. É que às vezes eu sonho demais.
Foto: @euquetireiessa
Fala a verdade, você gosta, não é? Gosta de ter minha atenção e faz de tudo para ter a certeza de que ela é só sua - nem que para isso seja necessário me tirar do sério ou me usar como objeto de suas brincadeiras. Você dá risada, esperando que me agrade, e mesmo que eu acompanhe seu riso, você vem com mil desculpas, dizendo que não quer de jeito me ofender, longe dos olhos dos outros para que ninguém perceba quem você é de verdade.
Admite. Toda essa macheza e ignorância é apenas pose. Você se preocupa, sente minha falta. Se eu demoro a responder seus chamados, você fica impaciente e tenta esconder com qualquer brincadeira que realmente se importa - mas meu nome não sai da sua boca mesmo quando eu não estou presente.
Fala a verdade, admite. Você me ama.
Fala a verdade, admite. Você me ama.
Confesso, fiquei sem saber como agir da última vez que te encontrei. Fazia tanto tempo que não via seu sorriso sincero, seu olhar curioso e seu cabelo rebelde, que perdi o foco diante de todas as lembranças boas.
Minha mente se encheu de vontades, uma atrás da outra. Como eu queria passar meus dedos entre seus cachos mais uma vez, com suas mãos percorrendo minhas costas, como na noite do nosso último beijo. Seria tão bom se pudéssemos voltar àquela noite, sem preocupações, sem qualquer outra coisa além de nós dois.
Tanta coisa aconteceu depois daquela noite; e eu e você... bom, nós nos tornamos apenas as lembranças boas e ruins que vêm me atormentar cada vez que te reencontro.
Em geral, eu viraria o rosto, fugiria de você, ignoraria o passado, da mesma forma que você fez. Mas foi a forma convidativa com que você me olhou que me quebrou e me jogou ao poço da confusão.
Quis ser fria ou talvez demonstrar que estava chateada, mas quis ainda mais te abraçar apertada e matar a saudade que me sufocava por dentro.
Como disse, não soube como reagir. Arrastei-me até você e, em meio a vergonha de querer seu abraço, o medo de você perceber e o remorso por tudo que nos sucedeu, acabei optando pela frieza.
Fugi assim que pude, sem confiar em mim mesma, e passei o resto da noite analisando porque ainda me permitia ficar naquele estado por sua presença. Ignorei os sinais, mas eles me perseguiram minuto após minuto. Nem mesmo o álcool foi capaz de superá-los - não consegui calar os gritos internos.
Confesso, eles só se calaram quando te vi nos braços de outra, suas mãos correndo pelo cabelo que deveria ser meu, seus lábios beijando alguém que não era eu. No lugar dos gritos por atenção, veio o choro. Mesmo depois de tanto tempo, eu não estava pronta para aquilo e nem queria estar. Queria seu cabelo brincalhão, seu sorriso maroto e seu olhar carinhoso apenas para mim.
Fito o espelho diante de mim: eu não me enxergo entre as camadas de proteção que criei ao meu redor. Uso mais que máscaras - são fantasias completas para iludir o mundo, para que ele não me veja de verdade. Escondo tudo que é real em mim, meus sonhos, meus anseios. Minhas paixões e até mesmo o meu sorriso. Nem mesmo esse abrir de lábios que vejo em reflexo não é meu.
Dia após dia, sou obrigada a construir e manter uma pessoa que não existe. Sou obrigada a suportar a pessoa que o mundo quer que eu seja. O que me resta? Aceitar em silêncio minha participação desta peça de teatro a que não pertenço, mas me domina dia após dia. Domina meu corpo, minhas roupas... Dias após dia, sou obrigada a conferir incessantemente cada um de meus detalhes, calculadamente escolhidos para refletirem em harmonia aos olhos dos outros.
Mas, diante da imagem que criei, quem sou de verdade chora, sem chance de se revelar. Sem chance de mostrar ao mundo que é muito mais do que mostro, do que me permito ser. Sei que sou mais do que essa pessoa que não conheço, mas que tem meu nome – quero ser mais que tudo isso, mas não consigo...
Minhas verdades não ditas se sufocam e se calam, lutando com garra para não morrer diante do reflexo de quem não sou. Eu apenas ajeito o cabelo, retoco a maquiagem, em meio aos gritos, implorando por misericórdia, abafados pela minha covardia. Tenho fé que um dia me libertarei dessas amarras... Mas não hoje.
Dia após dia, sou obrigada a construir e manter uma pessoa que não existe. Sou obrigada a suportar a pessoa que o mundo quer que eu seja. O que me resta? Aceitar em silêncio minha participação desta peça de teatro a que não pertenço, mas me domina dia após dia. Domina meu corpo, minhas roupas... Dias após dia, sou obrigada a conferir incessantemente cada um de meus detalhes, calculadamente escolhidos para refletirem em harmonia aos olhos dos outros.
Mas, diante da imagem que criei, quem sou de verdade chora, sem chance de se revelar. Sem chance de mostrar ao mundo que é muito mais do que mostro, do que me permito ser. Sei que sou mais do que essa pessoa que não conheço, mas que tem meu nome – quero ser mais que tudo isso, mas não consigo...
Minhas verdades não ditas se sufocam e se calam, lutando com garra para não morrer diante do reflexo de quem não sou. Eu apenas ajeito o cabelo, retoco a maquiagem, em meio aos gritos, implorando por misericórdia, abafados pela minha covardia. Tenho fé que um dia me libertarei dessas amarras... Mas não hoje.
MENTIROSA
Minha mãe me disse uma vez, entre as diversas lições que ela deveria me dar como boa mãe, que mentir é feio. Eu, ao meus seis, sete anos, ignorei completamente suas palavras - tanto o é que sei de várias histórias que evidenciam o quão mentirosa eu era quando criança. E, olha, eu era das boas.
Mamãe que me desculpe por, mais uma vez como outras tantas, desafiar suas importantíssimas lições, mas eu, particularmente, acho belíssima a arte da mentira, afinal, todo bom escritor é um belo de um mentiroso.
Quem mais, além de um mentiroso, poderia inventar pessoas e tramas capazes de fascinar e envolver os outros? Não é a descrição de como eu dormi mais cedo na outra noite que chama atenção, mas qualquer outra aventura no meio da madrugada.
Eu conto sobre cada uma dessas aventuras como se eu realmente acreditasse nelas - como se eu tivesse vivido todos os segundos dessas tramas - nos meus contos, nos meus poemas. Se os tolos e ingênuos acreditam nos casos estapafúrdios que o conto, paciência. Eu apenas relato, fica a cargo deles acreditar ou não.
Mas é difícil não comprar uma boa mentira. Ela instiga, ela cativa e nos leva a mundos que talvez não chegaríamos se não nos déssemos o direito de acreditar na ilusão, mesmo que apenas por um momento.
É por isso que eu minto. Minto em cada um dos meus personagens e escrevo realidades que estão longe da verdade. Sinto-me bem e quem lê também. Não há nada de errado em enganar um pouco quando só se tem benefício.
Em
uma guerra entre razão e emoção, só há destruição.
Eu disse que nunca mais amaria. Eu
acreditei veemente nas minhas palavras racionais, decidida a não me impor
nenhum outro sofrimento por pessoas indo embora. Eu me tranquei no meu castelo.
Deixei o mundo manter sua rotina de ilusões e arrependimentos enquanto juntava
o resto do que um dia fora meu coração.
Eu guardei meus sentimentos em uma
redoma, porque não permitiria
que eles se quebrassem mais uma vez. Eles não aguentariam mais um trinco
sequer. Poupei-os de outros sonhos, de outras fantasias, conservando-os longe
da realidade, dentro da minha fortaleza, na montanha mais alta que consegui
encontrar, crente que ninguém, jamais, conseguiria alcançá-los.
Mas bastou desampará-los por um
momento e lá estava ele a conquistá-los. Sequer o vi quando se aproximou.
Confiei cegamente na minha sensatez. Era ilógico imaginar que alguém cometeria
a loucura de escalar as barreiras que eu construí; que alguém enfrentaria toda
a nevasca que impus como obstáculo não apenas aos outros, mas também a mim.
Mas ele destruiu tudo. Ele demoliu
todos os percalços que eu metodicamente escolhi e detalhadamente planejei. Ele
localizou e extinguiu até mesmo aqueles que existiam apenas para impedir que eu
cedesse à vontade de entrar mais uma vez na loucura que chamamos de amor.
Tentei reagir, tentei escapar. Desafiei-o diversas vezes, questionando-o o porquê de ter suportado
todos os entraves impostos se não valia a pena. Não havia motivo para se
desgastar daquela forma se qualquer coisa boa que aquilo traria logo
esvaneceria como se jamais tivesse existido, deixando o pouco que restaria do
coração em carne-viva. Ele ignorou meu discurso como se sequer o ouvisse, como
se fossem apenas palavras ao vento.
Eu não desistiria. Eu me prometera
que não me deixaria ferir mais uma vez... nem uma lasca sequer. Usei de todas as
minhas forças para afastá-lo, joguei todas as pedras que alcancei. Ele aturou
cada um dos tormentos que o fiz passar, sem vacilar, sem hesitar. Deixou-me sem armas, deixou-me sem reação.
Tão logo eu fiquei sem defesas, tão
logo caí em seus braços.
Ele sorriu e então me
mostrou todo o martírio que eu por teimosia impusera não apenas a ele, mas a
mim também. Por um instante, pensei que ele quisesse me dar uma lição. Mostrar-me
que fora exatamente minha fuga, minha tentativa desesperada de não amar, de não
sofrer, que trouxera toda a dor.
Foto: @jasminecarter
Ele me encara como se me visse
por dentro e sou obrigada a desviar o olhar, sabendo exatamente o que ele diria.
Ele me tortura sem sair do lugar, sem sequer ter capacidade de me tocar.
Qualquer pessoa o veria como algo dispensável e sei que deveria fazer o mesmo.
Apenas um anel, eles disseram
quando chorei ao segurá-lo com o que restava das minhas forças. Apenas um anel,
eles enfatizaram quando o transformei em pingente. APENAS – UM – ANEL, eles
berraram quando quase enlouqueci por não encontra-lo. Apenas um anel eles enxergam,
mas eu não.
Diante dos meus olhos, ele ganha
vida, ele se torna alguém que conheci – alguém a quem eu tanto amei. Quando eu
o observo, é como se estivesse contemplando aqueles olhos; quando eu o seguro,
é como se estivesse segurando aquelas mãos. Se eu o beijar, eu juro que posso
sentir aqueles lábios pela última vez.
Esse anel é tudo que me restou
dele. Ao fechar os olhos, quase consigo senti-lo colocando-o em meu dedo mais
uma vez, enquanto sussurra suas palavras doces em meu ouvido, e sinto-me
protegida como no primeiro dia.
Sou obrigada a respirar fundo,
segurando as lágrimas. Não posso estragar a maquiagem e não quero arruinar nosso
derradeiro momento de intimidade através de dramas e choros. Preencho minha
mente com a memória de outros que já passaram por essa mesma mão, frutos do
mesmo amor, todos ligados ao mesmo dono.
Lembro-me do meu sorriso quando o
dono se ajoelhou aos meus pés pela primeira vez; da promessa que fizemos quando
o trocamos na frente do padre; de todos os momentos de felicidade que a ele
me remete.
Escuto as batidas na porta – está
na hora.
Beijo-o pela última vez, recheada
por tanto carinho e tiro-o de meu dedo com delicadeza.
É difícil renunciar a um amor tão
grande, mas coloco-o de volta em sua caixa, aquela em que o vi pela primeira
vez. O seu dono se foi, o amor que sentia por ele ficou – mas eu decidi seguir
em frente. Amarei a lembrança, mas deixarei o símbolo para trás.
Hoje receberei aquele que o substituirá
– meu dedo será ocupado por outro e essa caixa será seu lugar dele a partir de
hoje. Peço desculpas, sentindo-me uma idiota, mas sei que ele ficará bem.
Afinal, por mais que eu lhe dê tanto significado, ele é
apenas um anel.
Foto: @SuzyHazelwood
Eu não achei que fosse ter que
dizer essas palavras – não achei que um dia teria que escrevê-las como forma de
me despedir. Dizer adeus nunca foi meu forte, ainda mais quando por dentro de
mim corre algo que me faz querer ficar.
Em primeiro lugar, eu sinto muito
se o pressionei – e também sinto muito se tive que tomar uma decisão sem pensar
nos seus sentimentos. Eu precisei disso e não me arrependo do que escolhi. Só
me arrependo de não ter-lhe dito certas coisas antes.
Nos últimos meses, sozinha, eu
revivi os últimos anos – vi todos os meus sentimentos, todas as minhas
lembranças voltarem para me atormentar. Foi como se eu abrisse os históricos de
uma longa convivência e os lesse, só que tudo na minha mente.
Conforme as lembranças de nós dois
voltavam, eu me assisti em um processo lento de tortura e degradação,
confundindo passado e presente, inventando um futuro que nunca existiria – que
jamais existirá.
Eu revivi todos os nossos abraços,
nossos segredos, nossas conversas – toda a nossa amizade. Vi seus olhos
diversas vezes e me enterrei nos seus braços outras tantas. Segurei suas mãos
mais de uma vez e, de alguma forma, te fiz sorrir. Parecia um conto de fadas – eu
só tinha lembranças boas até então.
Depois que senti seu gosto,
desvirtuei tudo que tinha de nós dois. Acho que comecei a ver coisas que não
existiam, porque senti algo dentro de mim que não se conformava com a
realidade. Fui morrendo entre a verdade e a ilusão, enlouquecendo com o que eu
estava perdendo. Com o que eu perdi, na verdade.
Perdi a pessoa que eu considerava
meu melhor amigo; a pessoa que eu sabia que podia contar sempre que eu
precisasse – a pessoa que eu mais sinto falta no meu dia a dia. Destruí o que
eu tinha e até hoje não entendo o motivo. Parecia tão natural, mas hoje vejo
que não foi; que nada daquilo deveria ter acontecido – ou talvez devesse, para
que eu pudesse me desvincular de tudo que me prende ao passado.
Depois de tudo que já passamos, eu
não posso mais ser sua amiga. Sei que estou sendo covarde em dizer isso por uma
carta, mas acho que não teria coragem de olhar em seus olhos mais uma vez. Não
sei se aguentaria. Estou apagando tudo fomos da minha memória, apagando sua
existência da minha vida, porque não aguento o que estou sentindo e não aguento
saber que não é recíproco.
A culpa não é sua. Se existe alguém
a condenar por tudo isso, essa pessoa sou eu. A verdade é que eu demorei a ver
as coisas com os olhos de hoje. Eu passei os últimos anos me enganando – ou
tentando me enganar – e era óbvio que, o dia em que tudo viesse à tona, os
juros seriam cobrados sem qualquer piedade.
Eu incessantemente o tratei como um
amigo, quando, nas entrelinhas existia algo a mais, pelo menos de minha parte.
Passei todo esse tempo negando, escondendo o que eu sentia, porque eu namorava,
porque você namorava, por outras tantas sequências de encontros e desencontros,
acreditando cegamente nas minhas palavras de “apenas amigos”.
De fato, houve momentos em que eu
percebi indícios de que não era bem assim que eu me sentia, mas eu abafei todos
os gritos do meu interior, porque eu não conseguia encarar a realidade dos
fatos.
E então aconteceu. O “nós” saiu da
imaginação e me atingiu de frente, e diante de tanta veracidade de sentimentos,
eu perdi todas as minhas forças para lutar contra o que me atormentava por
dentro e por isso ficou impossível “vê-lo” como apenas amigo.
O problema nem foi perceber que o
queria de outra forma; o que me destruiu por dentro foi ver quantas chances de
ter um final diferente eu perdi por me recusar a lidar com o que sentia – foi
ver em cada uma das minhas memórias os indícios de que, sim, poderia ter sido
diferente, mas não é. Não importa o quanto eu queira, não posso mudar a
realidade, e nem você.
É isso que dói – ver que a hora de
sermos mais do eu e você, de sermos nós, já passou; que eu fiquei
inconscientemente me cozinhando por dentro por tanto tempo, que eu me queimei;
que eu menti para mim todo esse tempo – e que, agora que não consigo mais
engolir a intragável verdade de volta, estou completamente vulnerável.
Mas a responsável por tudo isso sou
eu, por socar tudo que sinto para de baixo do travesseiro e ignorar os minhas
emoções o máximo que posso. E não há nada que você possa fazer para diminuir
minha culpa. Eu vou ter que enfrentar as consequências sozinha.
Enfim, não há mais o que se falar
disso. Não tenho mais o que perder também, agora que já destruí nossa amizade. Acho
que só o que falta para dar uma basta em todo esse drama é dizer que – se é que
você já não entendeu – eu sempre gostei de você, e ainda gosto. Devia ter
deixado isso claro antes, devia ter percebido antes, mas agora é tarde demais.
É por isso que estou me afastando.
Não é por estar com raiva, não é por te culpar. É por gostar mais do que
deveria, mais do que sempre disse que gostava; por querer mais do que você pode
me dar.
Espero de verdade que você seja
muito feliz, e que me perdoe por isso, mas me dói só de pensar em você. Espero
um dia poder olhar para trás e ver todos os momentos que passamos juntos com um
sorriso no rosto, mas não agora. Agora não consigo.
Eu me despeço sem saber se um dia vou te ver novamente – se um dia terei coragem para isso. Encaminho-me para longe de seus poderes, deixando com você, além dessa carta, meu coração.
Eu me despeço sem saber se um dia vou te ver novamente – se um dia terei coragem para isso. Encaminho-me para longe de seus poderes, deixando com você, além dessa carta, meu coração.
E então ele me perguntou:
- Como você virou escritora? Quero ser um também, publicar livros e tal.
Eu sorri simpática e disse apenas que não me lembrava direito. Deve ter sido aos dez, onze anos, quando escrevi meu primeiro livro.
Ele me olhou satisfeito e se despediu dizendo, então, que também viraria o escritor que tanto queria ser e que logo publicaria um "best-seller".
Eu o observei partir, feliz com seu novo título, e pensei com meus botões... Pobre dele; enganei-o com tão pouco.
Errado estava ele de pensar que é o livro que faz o escritor. A bem da verdade, o que me fez escritora foi a vontade de contar histórias e dar vida ao mundo que existe só na minha cabeça. E esse anseio de jogar ao mundo todos os outros universos que existem na imaginação nasce com o escritor - é simples assim, se nasce escritor, não se vira. As tramas nascem assim também; os mundos e personagens simplesmente aparecem diante de nossos olhos - e é isso que importa e que me faz escritora.
Foto: @byrawpixel
O MENINO DO SKATE
A incrível história do amor que não aconteceu
Sabe como vários romances na
literatura e no cinema começam com um pequeno acidente? Um trombo, um tropeço,
coisas simples do cotidiano. Eu nunca fui muito chegada nesse tipo de trama,
acho que em parte porque nunca vivenciei nada do gênero e não conseguia
enxergar realidade nas narrativas do surgimento desse amor.
Pois bem, digamos que eu mordi minha
língua. Lá estava eu, tranquilamente caminhando, entretida na música que vinha
do meu iPod. Grande avenida, o grande movimento de sempre – e eis que ele me atropela.
Acho que tentou desviar de outro alguém, ou tentou me ultrapassar e eu que mudei
de sentido... A bem da verdade, não importa muito como se sucedeu – para todos
os efeitos, ele acertou o skate no meu pé. Ele voou para frente, seu meio de
transporte voltou para trás.
Pela forma com que ele aterrissou,
pude ver sua raiva por ter sido interceptado. Oras, era o meu pé que estava
machucado, não o dele. Eu que deveria estar com raiva. Acho que fechei a cara
enquanto observava o “babaca” se equilibrar, torcendo para que ele desse de
cara no chão...
Minha macumba não deu certo, que
pena.
Eu vi a raiva em seus ombros antes de
ele se virar e me ver.
Se estivéssemos em um filme, esse
momento duraria uns cinco minutos. Se estivéssemos em um livro, um de nós perderia
o fôlego por um milésimo de segundo. Ele coçaria a cabeça, constrangido, e eu
arrumaria o cabelo, claramente envergonhada, e lentamente desceria em direção
ao meu pé dolorido. Ele se aproximaria para checar se eu estava bem, nossas
mãos se tocariam, nossos olhares se encontrariam e BAM! Surgiria o amor.
É óbvio que nenhum dos dois notaria
isso logo de cara – mas algum objeto meu, obviamente identificado, teria caído
durante o pequeno acidente sem que nenhum de nós notasse. Ele me ajudaria a me
levantar, esperando, no fundo, que eu não conseguisse andar, mas eu estaria
encabulada demais para manter essa situação constrangedora por muito mais
tempo. Eu agradeceria a ajuda e ele pediria desculpas pela milésima vez. Aliás, as
únicas palavras a saírem de sua boca durante todo esse “encontro” seriam “Foi
mal” e algumas tentativas ininteligíveis de se começar uma conversa mais profunda.
Eu me despediria com o olhar de quem
quer ficar e já a alguma distância viraria para trás, para saber se ele ainda
estava lá, se ele também me olhava. Ele me observaria partir depois de soltar
um longo suspiro, não acreditando no que acontecera – e não acreditando, ainda
mais, na sua incapacidade de conversar normalmente com uma garota. Quando já
não conseguisse mais me distinguir dos outros, ele desviaria o olhar para o
chão e encontraria meu artefato.
Ah, os cosmos sempre ajudam os
apaixonados.
Ele cuidaria do que quer que fosse
esse artefato como se fosse sua vida, afinal, seria a única forma de me
reencontrar. E eu? Bom, eu seria eu mesma. Como diria meu amigo, eu iria Luisar
desde o segundo que o deixasse para trás. Por certo pensaria em mil tramas que
começariam com um acidente – e começaria um livro novo, em que a protagonista
se apaixona por um skatista.
Eu o procuraria em cada cara em cima
de uma prancha com quatro rodas, mesmo consciente da impossibilidade de encontra-lo
novamente, afinal, São Paulo não é como as novelas da Globo nos fazem
acreditar. De noite, na hora de dormir, perguntaria a minha fiel abelha de
pelúcia o nome do amor da minha vida que eu, por uma vergonha que não me é
peculiar, perdi a chance de perguntar.
Após alguns dias, já desacreditaria
do amor novamente e blasfemaria o destino, o culpado pelo meu sofrimento. Então
teria uma pequena taquicardia quando ele conseguisse me contatar, querendo me
devolver meu preciosíssimo objeto. Quando o encontrasse, eu contaria toda a
história envolvendo esse quase-talismã e ele escutaria toda a besteira que eu
diria com inquestionável interesse.
Por óbvio, combinaríamos em todos os
gostos e demoraria muito até percebermos que aquele acidente nada mais foi do
que o destino unindo duas pessoas que foram feitas uma para a outra.
Ah, que esplêndida história de amor
poderia ter começado com um erro de direção dele ou um desequilíbrio meu – ele poderia
ter me dado um novo personagem, poderia ter virado um livro.
Foto: pixabay
Olhei-me no espelho, acreditando
que dessa forma toda coragem que eu precisava surgiria feito relâmpago. Ali,
trancada no banheiro, tentei reviver tudo que me trouxera até aquele momento,
até aquele lugar. Meses e meses de espera, sonhando com o dia que eu
conquistaria aquele garoto; sim, aquele garoto que estava atrás da porta, à
espreita. E então, quando a oportunidade de tê-lo finalmente chegara, como uma
presa eu correra para o banheiro dele, querendo respirar, querendo fugir de
seus braços.
Encostei minhas costas na porta,
tentando me acalmar. Era como se eu pudesse escutar a respiração dele através
da única coisa que nos separava; eu sabia que era ele. Com o corpo forçando a
porta, tentava entender o que se passava pela minha cabeça enquanto ele esperava
o momento em que eu finalmente permitiria sua aproximação.
Eu também queria saber em que ele
pensava; de fato, eu sabia que não era o mesmo que eu. Quantas outras já
tiveram a oportunidade de tocá-lo antes de mim? Nunca me atreveria a perguntar;
e, no entanto, ele sabia que seria meu primeiro. Saber o que acontecia no meu
interior dava-lhe uma imensa vantagem sobre como agir, enquanto eu tentava não
enlouquecer... Eu não podia enlouquecer, eu precisava me acalmar... ou o
perderia para sempre.
Nunca me perdoaria se, depois de
tanto tempo sendo somente a amiga, ele ficasse fora do meu alcance mais uma vez.
Não, naquela noite provaria que a pessoa que ele procurava era eu, o que eu já
sabia desde... sempre.
Eu nunca mais seria apenas a
melhor amiga; eu seria a mulher que ele tanto queria. Não poderia ser tão
difícil... Apenas por uma noite! Eu satisfaria todos os desejos canibais dele,
os mesmos desejos que por anos eu sentira crescer dentro de mim e nunca tivera
fibra o suficiente para concretizá-los. Eu me transformaria de presa, a
predadora.
-Carol? – Eu escutei-o
chamando-me; seu tom de voz preocupado assustou-me por um instante. Quanto
tempo perdera ali, lutando contra meus medos, contra meus desejos animais?
-Já estou saindo. – respondi,
tentando soar o mais confiante possível. Uma última olhada no espelho e estaria
pronta. Com a mão na maçaneta, escutei a movimentação do cômodo ao lado; ele
havia me dado espaço, não me atacaria assim que eu abrisse a porta. Respirei
fundo antes de sair; aquele era meu último momento de concentração, meu último
momento sozinha antes de... tudo que eu, tão ferozmente, desejava.
Diante dele, à porta de seu
quarto, eu o encarei; ele fitou-me em retorno e eu pude sentir a química
crescendo. Eu sabia onde eu queria estar, e definitivamente não era no
banheiro. Como se pudesse ler minha mente, os lábios dele abriram em um sorriso
malicioso; não me contive e abri um parecido, igualmente sedutor, igualmente
predador.
-O que está esperando? – Foi tudo
que eu consegui dizer. Ele soltou um riso sádico, tentando esconder a surpresa
que minhas palavras causaram-lhe; não o recriminei, até eu não me reconhecia. O
garoto se levantou, dirigindo-se a mim. Por um momento, todo aquele medo voltou
a correr pelas minhas veias. Eu queria fugir, queria me esconder dele; dele e
de seu corpo. Mas não... Eu não o negaria; não... Não me negaria o prazer pelo
qual eu clamava. Eu já entregara meu coração a ele. O que haveria de errado em
entregar o resto?
No, I won’t sleep
tonight.
Foto: Akshar Dave
Rolei na cama mais uma vez, tentando pela milésima vez encontrar uma posição confortável para dormir, mas não era meu corpo que estava incomodado, mas sim minha mente. Não conseguia parar de pensar em nós, ou melhor, em como não existia mais o “nós”. Quando eu fechava os olhos, eu me lembrava. Não precisava forçar muito, elas caminhavam naturalmente. Bastava me concentrar na escuridão e no silêncio do meu quarto, que minha mente se enchia de lembranças.
Era por isso que mantinha meus olhos abertos, encarando a solidão da escuridão. Não facilitou; podia estar livre das memórias, mas fui consumida ainda mais forte pelos sentimentos. Sabia que era o certo a se fazer quando tomei minha decisão, sabia que só sobrara sofrimento onde antes havia muito amor. Não que não houvesse mais amor, mas a dor crescera tanto que o bom da nossa relação ficou mudo. Mas nada disso me consolava... não tinha mais você para me consolar, e não haveria mais.
Rolei para o outro lado, jurando para mim mesma que seria a última movimentação, que eu dormiria a qualquer custo. De frente para a parede, senti o frio da noite me consumindo e me lembrei de seu abraço tão terno sempre a me esquentar. Não consegui. Deixei-me levar pelas lágrimas, crente que elas lavariam minha alma, levando meus sentimentos embora. Não lutei contra o choro; não sei por quanto tempo ele me dominou, mas quando minha respiração acalmou, senti-me vazia por dentro. Todas as coisas ruins haviam desaparecido, mas eu ainda pensava no que já não existia mais, mas não me deixava dormir. Lembrei-me de como costumava dormir feliz revivendo nossos dias juntos. Sentei-me na cama. Minha mente não ia me dar paz naquela noite.
Acendi a luz do abajur e do lado estava nosso pote de sorrisos, com todas as coisas que dividimos durante nosso tempo juntos... Todas as coisas que me fizeram sorrir. Sem pensar, eu o peguei e o abrir, lendo cada um dos bilhetes. Uma a uma, as lembranças boas foram preenchendo minha mente.
Lembrei-me do castelo, da grama. Lembrei-me do cheiro de alecrim, da comida temperada. Lembrei-me do poema, das conversas sobre o universo. Lembrei-me dos signos, dos sinais. Lembrei-me dos jogos, das verdades, dos segredos. Lembrei-me das noites, dos finais de semana. Lembrei-me do abraço, do "latrocínio" e de outras tantas piadas que apenas nós entendíamos. Lembrei-me das gordices, do ratinho. Lembrei-me dos frappucinos, dos cafés e de diversas outras coisas que não sabia explicar quanta felicidade cabia dentro de mim por elas terem acontecido.
Por último, lembrei-me dele. Olhei para minha estante. Ele estava lá, sorrindo para mim – parrudo, firme e forte. Meu tuelho de pelúcia. Não pensei duas vezes; levantei na meia-luz, peguei-o e deitei mais uma vez. Sabia que não o devia fazê-lo, mas não consegui evitar. Ele ainda tinha o seu cheiro e eu o apertei tão forte que ele sumiu entre meus braços. Eu precisava ser forte, precisava seguir em frente, mas não naquela noite. Naquela noite, eu só precisava dormir – e só você conseguiria me ajudar.